Cozinha Experimental como Espaço de Aprendizagem
Prática pedagógica inovadora com estudante com surdocegueira
PE: Produto Educacional
COZINHA EXPERIMENTAL COMO ESPAÇO DE APRENDIZAGEM
PRÁTICA PEDAGÓGICA COM ESTUDANTE COM SURDOCEGUEIRA
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EIXO TEMÁTICO: XX
TIPO DO ESTUDO: PC; PD; ou RE
Roseli Ferreira da SILVA 1
Docente da rede estadual/ Programa de Pós-graduação em Ciências Naturais/UFMT
Fernando Augusto SILVA 2
Docente IFMT Campus Guarantã do Norte/ Programa de Pós-graduação em Ciências Naturais/UFMT
Resumo
O estudo descreve uma prática pedagógica realizada na cozinha experimental da Escola CEAADA com um estudante com surdocegueira, fundamentada nas teorias de Vygotsky (Zona de Desenvolvimento Proximal) e Bruner (andaimes). A proposta visou desenvolver autonomia, comunicação e habilidades funcionais por meio da preparação de receitas, com mediação do instrutor especializado. A sequência didática, adaptada às necessidades sensoriais do estudante, utilizou objetos de referência, recursos táteis e estratégias graduais de apoio. Ao longo dos encontros, observou-se avanço significativo na iniciativa, autoconfiança e participação ativa do aluno, evidenciando o potencial da cozinha experimental como ambiente inclusivo de aprendizagem. Mesmo com limitações estruturais, a mediação qualificada e o planejamento individualizado mostraram-se essenciais para promover o desenvolvimento integral e a participação social de pessoas com surdocegueira.
Palavras-chave: Surdocegueira. Cozinha experimental. Autonomia.
Compreendendo a Surdocegueira
A surdocegueira é uma deficiência única e complexa, caracterizada pela perda simultânea da visão e da audição em diferentes graus. Mais do que a simples soma de duas deficiências, ela impacta profundamente a comunicação, o acesso à informação e a participação social, exigindo abordagens pedagógicas específicas que considerem as potencialidades e necessidades individuais de cada pessoa.
Segundo o Grupo Brasil (2003), a surdocegueira compromete o uso dos sentidos de distância, dificultando a comunicação e a participação plena em contextos educacionais, vocacionais, recreativos e sociais. Para Almeida (2008), mais relevante do que o tipo e a intensidade das perdas é a funcionalidade resultante delas no cotidiano da pessoa.

Surdocegueira Plus: Quando a surdocegueira está associada a outras deficiências, como intelectuais, físico-motoras ou autismo, segundo Watanabe (2017).
Congênita
Presente desde o nascimento ou desenvolvida antes da aquisição da linguagem
Adquirida
Perda da visão e/ou audição após a aquisição da linguagem, parcial ou total
Fundamentos Teóricos: Vygotsky e a Zona de Desenvolvimento Proximal
O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), desenvolvido por Lev Vygotsky, é central para compreender como a aprendizagem pode ser potencializada através de intervenções planejadas. A ZDP é definida como a distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado pela capacidade de resolver problemas de forma independente, e o nível de desenvolvimento potencial, que se manifesta quando o indivíduo é capaz de resolver problemas com a ajuda de um adulto ou de um companheiro mais experiente.
"A zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes."
— Vygotsky (1991, p. 97)
Mediação
A importância do papel do outro — professores, colegas, familiares — no processo de aprendizagem
Suporte Temporário
Ajuda gradual que é retirada à medida que o aluno se apropria das habilidades
Autonomia
O objetivo final é que o estudante se torne capaz de realizar tarefas sem auxílio
Esse conceito destaca que o aprendizado antecipa o desenvolvimento e pode promovê-lo, contrariando ideias que consideram o desenvolvimento como pré-requisito para a aprendizagem. Para Vygotsky, a aprendizagem bem orientada atua como motor do desenvolvimento, favorecendo avanços em habilidades ainda não consolidadas, mas que estão em processo de formação.
Jerome Bruner e o Conceito de Andaimes
Apoio Personalizado
O instrutor mediador adapta a ajuda ao nível atual de desenvolvimento do estudante
Interação Ativa
O estudante com surdocegueira é estimulado a participar da construção do conhecimento junto com o mediador
Gradualidade
O suporte é removido progressivamente à medida que o discente apresenta mais autonomia
Foco na Autonomia
O objetivo final é que o estudante se torne capaz de realizar a tarefa sem auxílio
Jerome Bruner, importante psicólogo e educador norte-americano, desenvolveu o conceito de andaimes (scaffolding) em colaboração com David Wood e Gail Ross em 1976. O termo refere-se a uma forma de apoio temporário fornecido por um adulto ou por um colega mais experiente, que ajuda a criança a realizar uma tarefa que, sozinha, ainda não conseguiria executar.
Essa proposta se adequa perfeitamente às necessidades de estudantes com surdocegueira congênita, que requerem uma rotina estruturada e um suporte gradualmente retirado à medida que adquirem autonomia e desenvolvem suas competências. O conceito de andaimes está diretamente relacionado à Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky.
CARACTERÍSTICAS DO USO DE ANDAIMES NA EDUCAÇÃO:
1. Apoio personalizado: o instrutor mediador adapta a ajuda ao nível atual de desenvolvimento do seu estudante. 2. Interação ativa: o estudante com surdocegueira é estimulado a participar da construção do conhecimento junto com o mediador.
3. Gradualidade: o suporte é removido progressivamente à medida que o discente apresenta mias autonomia.
4. Foco na autonomia: o objetivo final é que o estudante se torne capaz de realizar a tarefa sem auxílio. Bruner (1978) destaca a importância da participação ativa do aluno no processo educativo: Baseado no pensamento de Bruner (1978), o papel do instrutor mediador é o de garantir que o estudante esteja envolvido ativamente na resolução de problemas, descobrindo princípios por si mesmo, ainda que com ajuda.
A Cozinha Experimental: Espaço Pedagógico Inclusivo
Uma cozinha experimental para pessoas com surdocegueira é um espaço pedagógico e acessível, planejado para o desenvolvimento da autonomia, da comunicação e de habilidades funcionais por meio da prática culinária. Trata-se de uma proposta que considera adaptações sensoriais, acessibilidade tátil, segurança e estratégias de mediação adequadas às necessidades específicas dessa deficiência única.
Autonomia
Promove o desenvolvimento de habilidades para a vida diária e independência funcional
Comunicação
Amplia o repertório comunicativo através de experiências sensoriais concretas
Socialização
Favorece o trabalho em equipe e a construção de relações interpessoais
Aprendizagem Significativa
Permite o ensino de conteúdos com aplicabilidade direta na vida cotidiana
"O aprendizado se dá nas interações e no processo de mediação social"
— Vygotsky (2001, p. 85)
Nesse contexto, a cozinha experimental constitui um ambiente de aprendizagem significativa que vai além da preparação de alimentos. Como destaca Mazzotta (2005), a acessibilidade deve ser pensada de forma integral, respeitando as especificidades sensoriais, com ambientes organizados e recursos adaptados que facilitem a orientação e a autonomia.
O Papel do Instrutor Mediador
De acordo com o Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego (2008), a função do instrutor mediador é fundamental no processo de ensino-aprendizagem de pessoas com surdocegueira. Esse profissional especializado atua como ponte entre o sujeito com surdocegueira e o ambiente, possibilitando uma percepção mais clara e fiel do mundo.
Segundo Cader-Nascimento e Costa (2010), o instrutor mediador atua como elo entre o estudante com surdocegueira e o mundo ao seu redor, favorecendo a exploração sensorial, a identificação de ingredientes por meio do tato e olfato, bem como a compreensão das etapas da atividade culinária.
Facilitação da Comunicação
Facilita o acesso à informação quando os canais visuais e auditivos são limitados ou inexistentes
Amplificação de Informações
Torna compreensíveis as informações que chegam ao aluno através de antecipação de eventos
Interpretação
Compreende e interpreta a comunicação expressiva, sinais e símbolos usados pela pessoa surdocega
Bem-estar Emocional
Promove o bem-estar social, estabelecendo uma relação interativa baseada na confiança
Desenvolvimento de Conceitos
Entende o impacto da surdez e cegueira na aprendizagem e ajuda no desenvolvimento de conceitos
Motivação
Estimula e motiva a participação ativa nas atividades propostas
Metodologia da Pesquisa
Pesquisa Bibliográfica
Levantamento de referências teóricas sobre educação de pessoas com surdocegueira
Abordagem Qualitativa
Explicação e reflexão dos fatos através de análise de significados
Análise de Vídeos
Coleta de dados através de filmagens das interações estudante-pesquisadora
Este estudo caracteriza-se como pesquisa bibliográfica e qualitativa. Segundo Fonseca (2002), a pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas e publicadas. A abordagem qualitativa, de acordo com Córdova (2009), consiste na explicação e reflexão dos fatos através de um objeto de amostra que leva à compreensão de determinadas informações.
Os dados produzidos foram coletados a partir da filmagem das interações estudante-pesquisadora e das produções do estudante. Esses dados foram analisados seguindo sete etapas interativas e não lineares propostas por Powell et al. (2004): observar atentamente os vídeos; descrever os dados; identificar eventos críticos; transcrever os eventos críticos; codificar; construir o enredo e compor a narrativa.

Local da Pesquisa: Cozinha experimental da Escola CEAADA em Cuiabá-MT, com o estudante surdocego W.C., que apresenta surdez profunda bilateral e baixa visão.
Sequência Didática: Preparação do Bolo de Cenoura
Materiais Utilizados
  • Objetos de referência: colher de plástico amarela para antecipar a atividade
  • Suporte de papelão: para apresentação dos utensílios e ingredientes
  • Utensílios: forma, colher, liquidificador, tigela, xícara e fouet
  • Ingredientes: trigo integral, água, óleo, fermento, cenouras, ovos e açúcar
  • Higiene: luvas, máscaras, guardanapo e álcool
01
Apresentação dos Materiais
Utilizando o suporte de papelão, a professora apresenta todos os utensílios e ingredientes, ensinando os sinais em Libras correspondentes
02
Referência da Atividade
Entrega da colher de plástico amarela que simboliza a atividade culinária
03
Transição para a Cozinha
Estudante e professora dirigem-se à cozinha experimental para execução da receita
04
Higienização
Limpeza da bancada com álcool e guardanapo, usando máscara e luvas
05
Execução da Receita
Cada ingrediente é apresentado sequencialmente com exploração sensorial completa
Resultados: Evolução da Autonomia
1
Encontros 1-4
Estudante não demonstrava iniciativa, aguardando sempre a professora. Necessidade de movimentos coativos (mão sobre mão) para todas as etapas
2
Encontro 6
Estudante já conseguia pegar todos os ingredientes, colocá-los na bancada na ordem correta e executar a receita com alguns ajustes
3
Encontro 9
Novas placas fixadas na parede. Estudante demonstra grande alegria ao receber o objeto de referência e coloca a touca espontaneamente
4
Resultado Final
Autonomia completa nas atividades permitidas. Estudante demonstra iniciativa, autoconfiança e entusiasmo em outras situações de sala de aula
A evolução na autonomia de W.C. comprova o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky. Ao longo dos encontros, observou-se avanço significativo na iniciativa, autoconfiança e participação ativa do aluno, evidenciando o potencial da cozinha experimental como ambiente inclusivo de aprendizagem.
O estudante passou a ter iniciativa para realizar atividades sozinho, não apenas na cozinha, mas também em outros contextos de sala de aula. A alegria é ainda maior quando o bolo é retirado do forno — ele já se senta imediatamente para saborear um pedaço, demonstrando plena compreensão do processo e satisfação com o resultado.
4
Semanas Iniciais
Tempo necessário para primeiras adaptações com movimentos coativos
6
Encontros
Até alcançar execução independente da receita com ajustes mínimos
2
Encontros Semanais
Frequência aumentada para acelerar o desenvolvimento da autonomia
Conclusões e Perspectivas
A experiência realizada na cozinha experimental da Escola CEAADA demonstra que o ensino voltado a estudantes com surdocegueira deve ir além da transmissão de conteúdos, envolvendo práticas contextualizadas que estimulem a autonomia, a comunicação e a participação ativa. A aplicação dos princípios de Vygotsky e Bruner, aliados à mediação qualificada do instrutor, possibilitou ao estudante participante ampliar seu repertório de habilidades funcionais, fortalecer sua autoconfiança e desenvolver maior iniciativa nas atividades propostas.
Mediação Qualificada
A presença de um instrutor mediador especializado é essencial para o sucesso do processo de aprendizagem
Planejamento Individualizado
Estratégias adaptadas às necessidades sensoriais específicas de cada estudante
Desenvolvimento Integral
Promoção simultânea de habilidades cognitivas, motoras, sociais e comunicativas
Apesar das limitações estruturais do espaço — ausência de armários adequados, uso de fogão industrial inadequado para estudantes surdocegos, poucos utensílios disponíveis — a adaptação de recursos, a organização do ambiente e a mediação sensível mostraram-se capazes de promover avanços significativos no processo de aprendizagem.
Assim, reafirma-se que a educação inclusiva para pessoas com surdocegueira deve considerar intervenções pedagógicas personalizadas, ambientes acessíveis e profissionais preparados, garantindo condições para que esses estudantes alcancem seu pleno potencial e tenham assegurado seu direito à participação social de forma digna e autônoma.

Priorizar habilidades funcionais é fundamental para alunos surdocegos. Quanto mais funcional for o programa, mais possibilidades de êxito o aluno terá, pois mais facilmente compreenderá o seu significado. As habilidades funcionais devem ser ensinadas em situações naturais e contextualizadas (BRASIL, 2009, p. 23).

Palavras-chave: Surdocegueira • Cozinha experimental • Autonomia • Zona de Desenvolvimento Proximal • Andaimes • Educação Inclusiva
REFERÊNCIAS
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Bruner, Jerome S. (1997) A Cultura da Educação. Porto Alegre: Artmed.
Bruner, Jerome S. (1978) O Processo da Educação. Cambridge: Harvard University Press.
BRUNER, Jerome S. (1966) Rumo a uma Teoria da Instrução. Cambridge: Harvard University Press.
Cader-nascimento (2010), F.A.A.A..; Costa, L. C. da. A atuação do instrutor mediador na educação de alunos com surdocegueira. Revista Benjamin Constant, n. 38, p. 18-25.
Glat, R.; Blanco (2007), R. Educação Inclusiva: direito à diversidade. Brasília: UNESCO,
Grupo Brasil. Livreto (2005) Surdocego Pré-linguistico, São Paulo: Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego e ao Múltiplo Deficiente Sensorial.
Grupo Brasil (2003). Cartilha da Surdocegueira. São Paulo: Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego e ao Múltiplo Deficiente Sensorial.
Mazzota (2005), M. J. S. A pessoa com deficiência visual: fundamentos e recursos para atuação. São Paulo: Cortez.
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Sá, N. M. de; Fonseca, C. M. da. (2019). Educação de pessoas com surdocegueira: estratégias de comunicação e aprendizagem. Revista Educação Especial, v. 32, n. 64.
Vygotsky, L. S. (2001). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.
Vygotsky, Lev S. (1991.) A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes.
Vygotsky, Lev S. (1998). A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes.
Wood, David; Brunner, Jerome S.; Ross, Gail. (1976). O papel da tutoria na resolução de problemas. Journal of Child Psychology and Psychiatry, v. 17, n. 2, p. 89–100.